A loucura por Apolo como base da sabedoria Grega

 

As origens da cultura grega arcaica são misteriosas e obscuras, sendo na religião grega que encontramos os primeiros indícios do conhecimento ocidental. Antes dos Poemas Homéricos, numa época de tradição oral anterior ao século VIII a.C., os mitos organizavam a realidade. Estudos revelam que existiram templos consagrados aos deuses por todo o território helénico. De todos estes templos destacava-se o de Delfos, dedicado a Apolo, onde este deus comunicava com o ser humano através das Pítias. Para os gregos antigos, que exaltavam a adivinhação, um sábio era quem manifestava o oculto. O conhecimento das causas do mundo, dos mistérios e do futuro, pertencia à sabedoria. E era em Delfos que Apolo comunicava os mistérios e o futuro aos homens, através do oráculo e da sacerdotisa. A sua palavra divina exprimia um conhecimento: da possessão delirante da Síbila resultavam preceitos como «nada em excesso» ou «conhece-te a ti mesmo». Apolo simbolizava o conhecimento e o seu culto era uma celebração da sabedoria.

Apolo era o deus do Sol e da luz, das doenças e da cura, da arte e da beleza, da razão e do conhecimento. Giorgio Colli, em O Nascimento da Filosofia (2010), apresenta-nos Apolo como um deus violento e feroz, «aquele que fere de longe». Este deus tinha uma natureza dupla e manifestava-se de modo ambíguo, alternando acção hostil com acção benigna. Os seus símbolos eram a lira (designando a acção benigna, as obras da beleza), e o arco (designando a acção hostil, as obras da morte). Esta duplicidade testemunha uma fractura entre o mundo humano e o mundo divino, em que a palavra era o intermediário, o ponto em que a misteriosa esfera divina entrava em comunicação com o mundo dos homens. Como coloca Colli, “o arco e as flechas do deus viram-se contra o mundo humano mediante o tecido das palavras e dos pensamentos.” (p. 30)

Em Fedro, Platão faz Sócrates discursar sobre a mania, sobre a loucura, contrapondo esta à moderação, exaltando a primeira como superior e divina. Para além disso, Platão distingue o «adivinho» do «profeta», sendo que o primeiro seria o homem mântico, possesso e delirante, enquanto ao segundo caberia reflectir sobre os enigmas e dar um sentido à visão do primeiro. Platão testemunha, ainda, a natureza divina e decisiva da mania como fundamento do culto délfico. Este culto tinha uma base xamânica, de origem asiática e nórdica, capaz de realizar curas milagrosas, de conhecer o futuro e profetizar. O seu carácter místico manifestava-se em Delfos pelas palavras delirantes da sacerdotisa, que eram as palavras de Apolo, a sua resposta oracular.

A loucura profética era inspirada por Apolo, e, por isso, Colli considera que este “não é o deus da medida, da harmonia, mas da possessão, da loucura.” (p. 14) Como existia um nexo entre a loucura e a palavra oracular, uma relação entre mania e Apolo, conseguimos acompanhar Colli quando considera que “a loucura é a matriz da sabedoria”. (p. 15) Uma vez que Apolo se manifestava aos homens através da mania, podemos aceitar a loucura como intrínseca à sabedoria grega arcaica, “desde o seu primeiro aparecimento no fenómeno da adivinhação” (p. 27).

Estabelecendo-se que a origem distante e obscura da sabedoria grega procede da exaltação apolínea, sublinha-se o papel fundamental que o deus Apolo nela assume. Nos alvores do conhecimento ocidental, na época do mito e da religião grega, quando reinava a palavra oral, só os deuses eram verdadeiramente sábios. Apenas eles conheciam as causas primeiras, o futuro incerto e os mistérios do mundo. E, de entre as divindades gregas, destacou-se Apolo, que, em Delfos, transmitia este conhecimento através dos enigmas, pronunciados nas visões místicas dos adivinhos e das sacerdotisas. No início, a palavra divina de Apolo era o conhecimento.

Bibliografia:

– COLLI, Giorgio. O Nascimento da Filosofia. Trad. Artur Mourão. LISBOA: Edições 70, 2010


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