SPLEEN1
Pluviôse, irritado com toda a cidade,
Da sua urna, em caudais, verte um frio tenebroso
Sobre aquele cemitério e seus moradores pálidos
E traz mortalidade aos arredores brumosos.
No mosaico, o meu gato, em busca de conchego,
Vai agitando o corpo tão magro e sarnento;
Vagueia pla goteira a alma de um poeta
Com a sua triste voz de fantasma friorento.
Lamenta-se o moscardo, e a lenha, que fumega,
Acompanha em falsete o relógio engripado,
Enquanto num concerto de sujos perfumes,
Como herança fatal de uma hidrópica velha,
O valete de copas e a dama de espadas
Falam sinistramente dos amores defuntos.
— Charles Baudelaire

O poema “Spleen” foi escrito por Charles Baudelaire no sec. XIX, em Paris, quando esta se impunha como a primeira metrópole moderna. Este soneto retrata o ambiente de um dia de Inverno numa grande cidade. O poema utiliza a descrição de uma paisagem urbana decadente para oferecer uma visão intensa e sensorial do estado de tristeza, depressão, angústia e melancolia profunda que define o próprio spleen. Através da representação de uma cidade afetada pela chuva e pelo frio persistente, da representação de figuras decrépitas em estado de sofrimento doentio, da personificação de um jogo de cartas como palco para a recordação de perdas passadas, o texto transmite um sentimento avassalador de mal-estar, tédio e a presença inescapável da morte. Este poema não é uma narrativa «cronológica», mas uma sucessão de imagens que expressam um ambiente soturno, até macabro e de horror. Tais imagens decorrem do global para o particular, da cidade para o doméstico, do espaço exterior para o interior anímico do próprio sujeito lírico.
A primeira estrofe descreve de forma mórbida uma paisagem urbana desolada e devastada pela mortalidade. O sujeito lírico começa por construir o ambiente geral do poema, esclarecendo o tempo e o lugar onde se irão suceder as imagens posteriores: logo no início indica o antigo mês republicano francês de Pluviôse (Janeiro/Fevereiro), um dia rigoroso de Inverno que jorra um “frio tenebroso” por todo o burgo. É neste espaço urbano que se desenrola o poema. Uma urbe da qual destaca, acima de tudo, o efeito do clima rigoroso que se estende “sobre aquele cemitério e seus moradores pálidos/ E traz a mortalidade aos arredores brumosos. //“. Encontramo-nos, então, perante uma cidade fustigada pelo rigor do Inverno, pelo frio e pela chuva, que resulta num mal-estar coletivo de sofrimento, doença e morte. É, sem dúvida, um ambiente mórbido, este que logo na primeira estrofe é representado.
A segunda estrofe apresenta um espaço doméstico, também ele doentio. Dá-se uma mudança de escala, passa-se da cidade para um contexto de maior proximidade, como é indicado pela presença do “meu gato”, “tão magro e sarnento”, que procura refúgio, agitado e sem sossego; ou pela goteira ruidosa, pela sarjeta onde “vagueia … a alma de um poeta” triste. O gato e esta goteira são objetos próximos, indicando um edifício onde o sujeito lírico se encontra, já não tão distante e vago como o aglomerado urbano representado na estrofe anterior. O ambiente retratado mantém a sua característica doentia, de sofrimento e de morte. O gato escanzelado está visivelmente enfermo e, da goteira o som que se ouve é triste, frio, fantasmagórico: “Vagueia pela goteira a alma de um poeta / Com a sua triste voz de fantasma friorento. //”. A sensação de estranheza e solidão do poema é amplificada.
Na terceira estrofe são descritos objetos e entidades degradadas, em sofrimento, mas os seus aspetos são mais precisos e refinados, uma vez que nos encontramos num espaço de, ainda, maior proximidade. Agora é retratado o espaço interior através de um inseto lamuriosos, de lenha que fumega, de um relógio de pêndulo avariado. De notar que, na medida de maior proximidade, é estimulado o sentido da audição, que é suscitada pelo lamento, por termos como falsete e concerto. O sujeito lírico continua a utilizar a doença e a sugerir a morte, atribuindo características tristes, sujas e desagradáveis aos objetos e acontecimentos que personifica: um “relógio engripado”, um concerto de aromas sujos.
A quarta e última estrofe parece representar um estado anímico interior, ao rematar o soneto com uma personificação que pode ser entendida como uma alucinação do próprio sujeito lírico: ele escuta um diálogo entre duas cartas de baralho, que conversam entre si. “O valete de copas e a dama de espadas / Falam sinistramente de amores defuntos. //”, abordando o passado perdido e terminando a falar de morte, tal como no início do poema.
O título deste soneto é sugestivo: “Spleen”, que, em francês, expressa um estado de espírito depressivo de letargia, de tédio, de vazio existencial. E é o que este poema nos oferece. Nele podemos observar um sujeito lírico que transmite sensações desconfortáveis, impressões de um momento mórbido na cidade. Ele utiliza elementos simbólicos e decadentes para criar um ambiente sombrio, uma atmosfera soturna de mal-estar, de sofrimento aflitivo, de melancolia angustiada, do tal vazio existencial.
REFERÊNCIAS:
- Baudelaire, Charles. “Spleen”. As Flores do Mal, traduzido por Fernando Pinto do Amaral, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, pp. 192-193.
NOTAS:
- O poema “Spleen”, de Charles Baudelaire foi originalmente publicado em 1857, em As Flores do Mal. É um dos vários poemas com o mesmo título que aparecem nesta coletânea. A versão portuguesa aqui apresentada consiste na tradução de Fernando Pinto do Amaral para a Assírio & Alvim (1992). Pode consultar aqui o original. ↩︎
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