A elegia grega arcaica foi assimilada e adaptada pelos poetas de Roma Clássica, tornando-se popular durante o sec. I a.c. Entre os poetas elegíacos latinos, encontra-se Públio Ovídio Nasão (43 a.c. – 18 d.c.), a quem se deve “o grande salto para a poética do sec. I d.c.” (Centeno 255). A sua primeira colectânea de versos amorosos foi publicada em 16 a.c. com o título de Amores. Na versão que chegou até nós, esta colectânea consiste em 51 elegias agrupadas em 3 livros. Repletos de sentimento e sensualidade, os seus poemas permitem múltiplas leituras. Eles celebram as relações entre sexos, onde homem e mulher se divertem em episódios de sedução.
O poema de abertura de cada livro justifica o modelo adoptado pelo poeta. Nas elegias que iniciam cada um dos livros (1.1, 2.1, 3.1) o poeta recusa a grandiosidade de outros géneros e opta pelo canto ligeiro do amor. A razão do poeta escrever elegias, ao invés de outro género mais solene e pesado, como a epopeia ou a tragédia, não se deve à sua falta de talento, mas antes à coação de Cupido. Foi o filho de Vénus que levou Ovídio à elegia. Logo no primeiro poema, o poeta conta como se preparava para cantar combates violentos, quando Cupido surripiou-lhe um pé (o metro do verso). Pouco depois este atira ao poeta uma seta e, com ela, o assunto para Ovídio cantar. “Certeiras foram as setas daquele menino!”, exclama o poeta, “Todo eu me inflamo, e no coração vazio passa a reinar o Amor. / Com seis pés há-de começar o meu trabalho, em cinco há-de assentar; / adeus, ó feros combates, com vossos ritmos!” (Ovídio 33). Apresenta, assim, o tema e a forma que vai cantar: o Amor em dísticos de hexâmetros e pentâmetros dactílicos, alternados, que definem a elegia.
Em Amores, as elegias repartem-se por assuntos diversificados. Os temas alternam-se ao longo da obra, sem existir uma sequência lógica entre os poemas que compõem a colectânea. Têm em comum o tema genérico do amor. Para além deste, ressalta o tema do engano, da traição e da infidelidade, presente em mais de um terço da obra. Devemos considerar a atitude da sociedade desta época em relação ao casamento, alerta o tradutor de Amores, na sua introdução à obra. A figura do casamento consistia num contracto que relegava a mulher para último plano, tratando-a como um objecto. Assim, o amor concretizava-se fora do casamento. São estas razões que levam Carlos André a considerar esta obra como um manual de engano e traição (André 14-15).
O canto de amor é assunto de alguns poemas, nomeadamente nas elegias 1.3, 1.5 e 2.9. Como realça o tradutor, o amor olvidiano procura obter prazer. No entanto, para o poeta, só existe prazer se for mútuo. É na reciprocidade que se pode consumar o amor e o prazer. Por outro lado, a figura do poeta ‘escravo de amor’, que é dominante nos demais poetas elegíacos latinos, raramente se manifesta em Ovídio. Ele é um poeta do amor lúdico, mais do que da paixão. “O amor, em Ovídio, parece ser, antes de mais, divertimento, ou melhor, divertimento poético, porque é de um amor cantado que se trata.” (André 9)
Entre as amantes de Ovídio, uma existe que lhe merece especial dedicação. Em Amores, o nome de Corina surge pela primeira vez na elegia 1.5, porventura a mais erótica da colectânea. É um poema que descreve uma tarde de prazer junto da sua amada. Num dia de calor, à luz de uma janela semi-fechada, “Eis que surge Corina, resguardada e envolta na sua túnica” quase transparente, que Ovídio arranca, passando a descrever a beleza do corpo amado. O poeta termina a elegia perguntando “O resto, quem o não sabe? Depois da fadiga, repousámos ambos. / Assim possam correr muitas vezes as minhas tardes!” Não obstante todos os contratempos e obstáculos, o amor triunfou. Corina rendeu-se aos encantos e ao prazer. Mais tarde, na elegia 2.12, um canto de triunfo celebrará este êxito: “Colocai-vos em volta da minha fronte, ó louros da vitória! / Venci; eis que Corina está nos meus braços“.
Na colectânea Amores, acrescem, ainda, algumas elegias sobre temas saídos do quotidiano. Por exemplo, em 1.14, censura a amante por ter frisado o cabelo com um ferro em brasa e, em 2.6, lamenta-se pela morte do papagaio de Corina, “o pássaro de imitação trazido das Índias do Oriente”. No epílogo, quando encerra a colectânea, Ovídio despede-se desta forma poética, tendo esperança que as suas elegias fiquem para a posterioridade: “aqui se atinge a meta derradeira de minhas elegias / … / Mansas elegias, Musa do prazer, adeus / obra que ficarás, depois da minha morte, a dar de mim testemunho.” (Ovídio 131)
É notável a profundidade e amplidão da influência das elegias amorosas e eróticas da Antiguidade Clássica. A obra Amores, de Ovídio, será uma das mais importantes colectâneas deste género. Ela introduziu na posterioridade tanto a forma dos seus poemas como a temática do seu conteúdo. A forma poética da
elegia foi-se adaptando e modificando com o decorrer dos séculos e através de diferentes linguagens e culturas. E o tema do amor tem sido exaustivamente
explorado ao longo da história da poesia lírica, chegando a impor-se na definição de géneros, como as cantigas de amigo medievais ou os sonetos de amor. Este tema foi retomado uma e outra vez ao longo da modernidade. Mais perto de nós, podemos observar a sua predominância nas obras poéticas de autores como Pablo Neruda ou Florbela Espanca. Amores continua a ser um modelo e uma referência inspiradora, quando se trata de cantar o amor. Foi esta obra, especialmente a sua temática, que aqui tentámos abordar.
BIBLIOGRAFIA:
- André, Carlos Ascenso. Introdução a Amores, de Ovídio. Lisboa: Livros Cotovia, 2006
- Centeno, Rui. (coord.) Civilizações Clássicas II: Roma. Lisboa: Universidade Aberta, 1997
- Ovídio. Amores. Tradução de Carlos Ascenso André. Lisboa: Livros Cotovia, 2006
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